Por John Wilson
Na versão da oração do Pai Nosso que aparece no evangelho segundo Mateus, encontra-se a seguinte súplica: “Perdoa as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”. O modelo de súplica, ensinado por ninguém menos que o próprio Cristo, atravessa os séculos como símbolo de devoção e inspiração para boa parte da humanidade. Mais que uma simples prece, contudo, ao Pai Nosso encerra uma série de reflexões. Uma delas é em relação ao perdão, tão bem expresso na frase “perdoa nossas dívidas, assim como nós perdoamos a quem nos deve”. Mas, o que pode ser dito sobre a metáfora do pecado como uma dívida? E de que forma tal metáfora se difere daquela que é comum em boa parte da Bíblia, sobretudo no Antigo Testamento, também em referência ao pecado? Por outro lado, de que forma essa lógica do pecado como débito se relaciona com a ênfase da Igreja de Cristo nos primeiros dias na graça, ou com a discussão do período da Reforma sobre a questão dos méritos? Em suma, qual a sua implicação na doutrina da expiação?
Estas são algumas das perguntas que Gary Anderson responde em seu recém lançado livro Pecado: A história (tradução livre, ainda inédito no Brasil), pela Yale University Press. Professor de Antigo Testamento e hebraico bíblico no departamento de teologia da Universidade de Notre Dame, Anderson conversou com John Wilson, editor do Book & Culture, sobre as mudanças nos conceitos de pecado e perdão no Antigo e Novo Testamento, bem como sobre as consequências dessas mudanças. O que emerge da conversa é uma visão inquietante da questão, da qual a figura de Deus emerge como um Pai amoroso que requer de seus filhos uma postura igualmente amorosa e perdoadora diante do mundo.
JOHN WILSON – Quais foram suas interpretações a respeito do pecado e da graça divina a partir da leitura de trechos dos Manuscritos do Mar Morto?
GARY ANDERSON – Eu estava lendo um texto dos Manuscritos intitulado A aliança de Damasco, quando percebi que, diversas vezes, aparecia a ideia de perdão, mas expressada com um verbo que a Bíblia hebraica não usa para se referir a este assunto. Era o verbo azab, que geralmente significa “abandonar”. Aquilo me pareceu bastante estranho, e ao pesquisar, descobri que o verbo aramaico para “perdoar” tinha exatamente aquele significado. Então, no aramaico, perdoar é cancelar aquilo que tinha um peso de dívida – ou seja, perdoado é aquele que está abandonando uma obrigação. Alguém que tem uma dívida em relação a outra pessoa está sujeito a se ver cobrado a qualquer momento. Mas, se por qualquer circunstância, ou por misericórdia, o credor resolve não cobrar,está abrindo mão de um direito. Para mim, isso é uma epifania. O que encontramos naquele texto de Qumran é uma nova forma de se pensar os conceitos de pecado e perdão, que não é encontrada em lugar algum no Antigo Testamento, mas parece ocupar espaço considerável no Novo.
Mas qual a ligação desta descoberta com o conteúdo da oração do Pai Nosso?
Mateus usa uma terminologia grega que corresponde ao aramaico – isto é, aquela do cancelamento da dívida –, enquanto que Lucas usa a expressão “perdoar”, de forma que a oração do Pai Nosso pareça mais compreensível ao público grego que estava recebendo a mensagem. Os leitores das traduções modernas da Bíblia não se dão conta disso, mas no grego do primeiro século o conceito de pecado não era tido como de dívida, assim como o conceito de perdão não era entendido como remissão ou cancelamento de tal dívida. Quando o Novo Testamento apresenta Jesus referindo-se ao pecado como dívida, o faz destacando ao leitor o fato de o grego não ser sua língua materna. Seu idioma é o aramaico ou o hebraico. Esse foi o começo de tudo. Diante destas variações, percebi que era possível contar uma história com base nestas mudanças.
Em seu livro, o senhor menciona que o pecado tem uma história. O que quis dizer?
Há na Bíblia várias metáforas sobre o pecado. Então, por que se ater a apenas uma delas? Contudo, há metáforas que ocupam lugar de destaque e importância nas Escrituras. No Antigo Testamento, a maioria das referências ao pecado apresentam-no como um peso a ser carregado. Isso, contudo, não é refletido nas traduções da Bíblia para o inglês, por exemplo. Logo, em muitos textos do Antigo Testamento nos quais a Bíblia fala sobre perdoar como retirar esse peso que é carregado. Já quando nos dirigimos ao período do Segundo Templo – dos Manuscritos do Mar Morto, do Novo Testamento e assim por diante –, tal imagem de pecado desaparece quase completamente nas parábolas e histórias contadas por Jesus. Ao invés disso, o Mestre fala sobre devedores e credores, e sobre acumularmos tesouros nos céus. Nenhuma destas imagens se encontra no Antigo Testamento. Entretanto, elas se tornam comuns no hebraico e aramaico do Segundo Templo, razão pela qual não é uma surpresa encontrarmo-nas nos discursos de Jesus.
Muitos tradutores contemporâneos tiram as metáforas dos textos, por entenderem que isso obscurece o significado do texto...
Verdade. E eu não tenho problema com isso. Penso haver uma boa prática nas traduções. Evidentemente, perde-se, nesse caso, a noção de desde quando os israelitas trabalham com a noção de pecado. Por isso, quando os leitores se deparam com Levítico 16 e o dia da expiação, por exemplo, e veem Israel lançando os pecados sobre os lombos de um animal – chamado erroneamente de bode expiatório –, eles se deparam com uma imagem bastante peculiar. Se, naquele contexto, pecados são pesos a serem carregados, qual a melhor forma de lidar com isso, senão fazendo com que um animal os carregue pelo povo?
No começo do livro, o senhor diz que, além das particularidades concretas da linguagem humana, não há acesso às categorias de pecado e perdão. O que significa exatamente isso?
Quando disse isso, eu pensava particularmente na relação entre a metáfora e a narrativa, uma ideia que, na verdade, tomei emprestada de Paul Ricoeur. Seu livro O simbolismo da maldade[tradução livre] foi extremamente importante para mim. Ricoeur argumenta que muitos teólogos têm falhado em perceber como nosso entendimento do pecado está profundamente influenciado por algumas narrativas específicas, e que tais narrativas, por sua vez, dependem de metáforas. Essas metáforas não são apenas ornamentos literários. O argumento de Ricoeur é, em certo sentido, a maior tese do meu livro. O problema é que aquele autor desconhece o hebraico. Em muitos aspectos, é possível dizer que meu livro é um retorno à idéia de Ricoeur - com uma profunda ênfase nos conceitos de pecado e perdão no hebraico e no Novo Testamento - para contar o que ele deixou de apresentar. Algo que emergiu do meu livro – o que, de fato, veio como uma grande surpresa – é que uma vez que os autores judaicos e cristãos começaram a encarar o perdão como débito, isso levou consequentemente à idéia de que ações virtuosas geram crédito.
Então, nesta ótica, o pecado seria débito?
É nesse ponto que o trabalho de George Lakoff e Mark Johnson sobre a lógica conceitual das metáforas é bastante importante. Se o pecado é um débito, isso significa que nós devemos dinheiro. E se uma boa ação será tida como crédito, a melhor forma de acumular créditos é fazendo caridade. No contexto da sinagoga e da igreja, é verdade afirmar que alguém pode ganhar créditos fazendo boas ações. O texto de Mateus 25 é um exemplo clássico disse. Vestir os desnudos, alimentar os pobres, visitar os enfermos e tudo o mais. A grande mensagem, nesse período, é fazer o que Jesus disse sobre dar nossas moedas e acumular tesouros no céu.
Isso também é contemplado no livro?
Como mostro no livro, essa não é uma ideia exclusiva de Jesus. Essa tese é comum entre os judeus do Segundo Templo, que criaram essa maravilhosa metáfora com base na forma como compreendiam a questão da culpabilidade humana. No Antigo Testamento, um dos pontos fracos da metáfora do pecado como peso a ser carregado é a dificuldade de se criar um correlato – a imagem de um indivíduo virtuoso capaz de carregar o peso dos outros. Não há essa ideia. Por outro lado, com a noção do pecado como uma dívida, e do pecador como um devedor, imediatamente vem à mente a imagem de um sujeito virtuoso como alguém que tem um tesouro nos céus.
O senhor cita um poema do teólogo Santo Éfrem, poeta sírio do quarto século, no qual ele fala de fazer um empréstimo a Deus. O que ele quis dizer com “o enriquecedor de todos é o mesmo que pega emprestado de todos”?
A caridade foi estabelecida na economia divina como um ato de fazer um empréstimo a Deus. Isso guarda relação com o que foi dito em Provérbios 19.17: “Ao Senhor empresta o que se compadece do pobre; ele lhe pagará o seu benefício”.
É assim que Deus revela ao homem como deseja que ele seja?
Acho que a linguagem dominante do pecado e do perdão é terapêutica. Isso vale para todos os cristãos: a seriedade do pecado é frequentemente subestimada. Quer ver? O que era visto como pecado no passado, agora é tido como parte de nossa personalidade, ou de outro aspecto cultural qualquer. É muito mais fácil falar nestes termos do que tratar da questão como pecado. Ainda que isso seja um fato, também é inegável que a pecaminosidade continua revelando seus sinais de forma cada vez mais clara; e, de alguma forma, as pessoas encontrarão sentido no discurso bíblico sobre este assunto. Na última campanha presidencial nos Estados Unidos, o então candidato Barack Obama tratou a escravidão no seu país como pecado – um pecado que manchou o caráter de sua nação. Bem, ali nós tivemos um indivíduo se reportando retoricamente à Bíblia, dizendo que o que aconteceu teve um caráter pecaminoso, e não foi simplesmente um aspecto histórico ou econômico. Logo, mesmo nos dias atuais, nos mais diversos contextos, as necessidades de fazer uso das metáforas bíblicas continuam reais.
Essa passagem de Provérbios é um texto bastante provocativo. Não se prega muito sobre ela, não é mesmo?
É uma passagem incrivelmente provocativa, e na Igreja primitiva quase todo comentário sobre Mateus 25, o texto clássico sobre o julgamento final, vê esse trecho como um reflexo de Provérbios 19.17. Ao olharmos para Éfrem, nós nos deparamos com uma elaboração teológica e poética da visão do pecado como dívida e da virtude como um crédito. Alguém, todavia, pode dizer que, se Deus é o dono do ouro e da prata, por que precisaria de sacrifícios? Éfrem está correto em seu raciocínio: porque somos seres corpóreos, precisamos de certos mecanismos de oferecimento de adoração e serviço a Deus. Por isso, Deus se apresenta no Antigo Testamento como uma espécie de homem faminto, que deseja ser alimentado por nossos sacrifícios, ainda que não precise deles. Então, como Éfrem diz, no Novo Testamento Deus toma uma nova face. Agora, ele se apresenta como um pobre, que precisa da sua oferta, ainda que nós saibamos que ele de nada necessita. Ele é o enriquecedor de todos.
Como assim?
O Senhor é aquele que providencia aquilo que recebemos, para que possamos retribuir de volta às suas mãos. Fazer doações aos pobres é parte daquilo que Deus fez ontologicamente na estrutura do universo. Isto é, o universo funciona pelo princípio da caridade. Isso significa que Deus ama o mundo, ama o pobre. E se nós amarmos o mundo e amarmos o pobre, nos beneficiaremos por fazermos exatamente aquilo que Deus faz.
Traduzido por Daniel Leite Guanaes
Fonte: cristianismohoje.combr
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