O estudo da teologia adquire significado quando lança base sólida para a construção da experiência
Jon é estudante do primeiro ano de um curso de teologia e pertence a uma vibrante igreja. Ele faz trabalhos no campus onde estuda, e em breve será líder de uma congregação. Como muitos outros estudantes da disciplina, ingressou no seminário com bastante desejo no coração, mas pouco conhecimento do assunto. No ambiente acadêmico, a tarefa de questionar o mundo é levada a sério. Manter sua fé acanhada não é, por isso, uma opção para Jon. Ele se encontra em um mundo secular, onde sua crença sofre constante ataque. Como muitos novos estudantes de teologia, o rapaz sente-se ameaçado quando ouve que há diferentes tipos de cristãos. No começo, algumas das ideias apresentadas em sala de aula o aborreceram claramente. No entanto, aos poucos, ele aprendeu a lidar com tais questões. Agora, sente-se motivado a não apenas concluir os estudos, obter um diploma e partir para o ministério, mas também a tornar-se um cristão melhor – não apenas em seu coração, mas no entendimento de seu chamado e do exercício dele em sua geração.
Aos colegas e professores, Jon comenta que as coisas agora começam a fazer mais sentido. Ele está crescendo na fé, e o estudo das doutrinas – uma mente debaixo da graça – o está ajudando nesse crescimento. Só que doutrina é uma palavra que provoca, na mente moderna, uma série de imagens negativas: desde a memória da Inquisição, que em nome dela mandou gente arder na fogueira, ao enfado de ver teólogos debatendo sobre o número de anjos por metro quadrado no céu. De fato, doutrinas parecem bastante assustadoras. Cristãos vibrantes parecem querer cada vez menos relação com isso, preferindo focar suas atenções nas disciplinas espirituais, trabalhos de misericórdia e vida cristã autêntica. Para muita gente, doutrina pertence ao passado, e era geralmente usada para dividir a Igreja. Afinal, quantos protestantes, inclusive os reformadores, perderam tempo e energia discutindo se era permitido ou não mastigar o pão da ceia?
Será que é possível viver uma vida como discípulo de Cristo sem se deparar com questões doutrinárias? Se doutrina é uma forma de articular a maneira pela qual Deus manifesta sua presença na Igreja e, através dela, no mundo, ela pode trazer muito benefício, como no caso de Jon. Vista sob esse ângulo, a doutrina não é um peso, mas algo que ajuda o cristão em sua caminhada. Sua função não é a de dar aos crentes destaque na sociedade, mas ajudá-los a serem fiéis em seu contexto. A crise nas igrejas no Ocidente não são crises decorrentes da falta de informação, mas decorrentes do tipo de informação que tem sido passada. O filósofo James K.A.Smith apresenta isso de forma perfeita: “A teologia não é uma opção intelectual que faz de nós crentes inteligentes; é o conhecimento da graça que faz de nós discípulos fiéis.”
Para estabelecer bem a diferença entre uma coisa e outra, vale dizer que doutrina é a teologia organizada. E isso, a gente encontra em quaisquer credos e confissões de fé. Teologia, ou como se diz, “fazer teologia”, é o processo de se estudar e elaborar ideias que acabarão como doutrinas. Uma declaração doutrinária – como as declarações do credo Niceno, por exemplo – é sempre uma declaração teológica. Nem todas as declarações teológicas, no entanto, acabam se tornando premissas doutrinárias. Mesmo assim, os termos doutrina e teologia referem-se à abordagem intelectual da fé, que, como Smith afirma, transforma o cristão em discípulo fiel de Jesus. Doutrina existe para fazer com que vejamos nossa vida de forma mais profunda, considerando as implicações de viver em favor do próximo, fazendo o que é certo e beneficiando a todos. Em síntese, doutrina é a sabedoria que nos ajuda a entender qual é nossa missão. Mesmo assim, nós parecemos bastante desinteressados em doutrina nos dias atuais – dentro e fora da igreja.
Experiência X conhecimento – Friedrich Schleiermacher, pensador iluminista alemão do século 19, construiu seu pensamento teológico sobre a questão da experiência espiritual. Tal ideia encontra eco na Igreja de hoje, cujos integrantes parecem muito mais interessados numa religiosidade baseada nas sensações do que em conteúdos. Em muitos casos, nós encontramos essa influência na forma pragmática com que nossas igrejas, seminários e faculdades teológicas são conduzidos, mesmo sem perceber isso. Não por acaso, livros de sucesso entre o público evangélico são aqueles de categorias editoriais como transformação pessoal, autoajuda e espiritualidade prática. Uma teologia fundada sobre experiência geralmente falha em questões como moralismo, humanismo, ou, como é o caso do cristianismo norte-americano, uma religião na qual Deus e a nação são facilmente confundidos.
Considerado o pai da teologia liberal, Schleiermacher pensou que a essência do cristianismo estivesse no impulso da experiência, e não na doutrina, o que parece ter causado bastante problema. Isso prejudicou grandemente a relação entre católicos e protestantes, e ameaçou até mesmo o avanço científico. Para ele, se as ideias pudessem ser filtradas até um denominador comum, então as diferenças seriam dissipadas, e a humanidade poderia caminhar adiante em harmonia. Tal essência era religiosa – uma conexão com Deus capaz de ser experimentada por todo e qualquer homem. Exatamente o que hoje conhecemos como espiritualidade. Schleiermacher começou com experiências pessoais com Deus, e transformou tais experiências em teologia. De acordo com ele, começando a partir de nós mesmos, de nossos desejos, é mais fácil desenvolvermos uma visão mais pura de Deus e sermos relevantes como Igreja. Entretanto, de que forma esse projeto funciona?
Ao longo dos últimos 200 anos de história da Igreja, as ramificações teológicas têm sido grandes. Até mesmo aquela que foi chamada de a única doutrina bíblica verificável empiricamente, a do pecado original, encetou as mais diversas abordagens. Para Schleiermacher, pecado não é apenas uma questão de burlar as leis de Deus; pecado é energia desperdiçada. No seu entender, se prestássemos mais atenção nas coisas e tivéssemos mais informações, desejaríamos ser mais espirituais. Logo, um pecador é alguém que está desinformado acerca de quem ele é. Um religioso, em contrapartida, está ciente de sua posição, uma vez que conhece as verdades espirituais.
Sob tal perspectiva, Jesus aparece apenas como alguém que veio para nos mostrar nosso potencial e despertar a sensibilidade religiosa que existe em nós. Uma espécie de mestre que pode ser chamado de filho de Deus, mas difere do homem apenas em uma questão de nível, e não de natureza. Ou seja, sob tal ótica, questiona-se a divindade de Cristo. A Igreja, então, torna-se o lugar no qual nos encontramos para ouvir que estamos todos bem, seguindo o modelo de piedade estabelecido por Jesus. Embora possa haver questões positivas em tudo isso, permanece a questão de ser Deus ou não, nessa perspectiva, o agente de mudança na vida das pessoas. Afinal de contas, as verdades essenciais cristãs, mesmo aquelas sobre Jesus, precisam ser tidas como autênticas; do contrário, elas são descartadas.
É possível ver, portanto, que a teologia de Schleiermacher precisa ser corrigida em alguns aspectos. Ele nos leva, com seu esquema teológico, a questionarmos conceitos teológicos, ao invés de nos deixarmos ser interrogados por eles. A experiência espiritual acaba por nos colocar, e não a Deus, no banco do motorista. Permanecendo filhos teológicos do filósofo alemão, de forma consciente ou não, corremos o risco de transformar o cristianismo em algo, ainda que aparentemente interessante, desprovido de vigor espiritual. O oposto da experiência é o dogmatismo; um escolasticismo religioso frio, que acaba por sugar e esvaziar nossa relação com Deus.
Diálogo – É preciso prosseguir na discussão reconhecendo uma verdade: toda a teologia cristã nos ajuda a entender a Bíblia. É através dela que podemos entender o sentido espiritual de textos escritos há milhares de anos, partindo de culturas que são completamente diferentes da nossa. Além disso, as Escrituras Sagradas apresentam situações que são claramente direcionadas a contextos específicos, como a questão da imoralidade da cidade de Corinto que o apóstolo Paulo conheceu. Assim, a Palavra de Deus apresenta conceitos que ora parecem fáceis, ora obscuros. Há ainda passagens que proporcionam as mais diversas formas de interpretação.
Os cristãos primitivos sabiam disso tudo muito bem. Os três primeiros séculos da nossa Era foram palco de um diálogo bastante intenso com a Bíblia. Em suas abordagens teológicas, os primeiros crentes em Jesus eram desafiados a ler as Escrituras sem as influências judaicas, gregas ou as tendências paulinas ou petrinas que poderiam prejudicar sua interpretação. Ler a Bíblia através de lentes específicas pode levar a falsas conclusões, resultando em distorções práticas na vida cristã. Aqueles que encontraram pouca evidência bíblica sobre o que estava sendo dito acerca da doutrina da Trindade, por exemplo, acabaram chegando a conclusões sobre um Cristo que nunca foi humano, no caso dos docetas, ou que jamais foi divino, como defendia o arianismo.
Longe de sugerir a desimportância da Bíblia, a investigação teológica tem por objetivo entender as Escrituras como documento histórico, mas, muito além disso, afirmá-la como Palavra de Deus capaz de transformar o homem. A teologia nunca se viu como apenas reflexões humanas sobre algumas verdades conjecturadas. O melhor solo sobre o qual a teologia é edificada são as próprias Escrituras Sagradas como verdade revelada de Deus, e não as experiências espirituais. A autoridade da Palavra não pode ser colocada ao lado das experiências de cristãos. Como disse Martinho Lutero, as Escrituras são autoridade porque vêm de Cristo e apontam para ele. São as Escrituras que nos interrogam. Porque pode ser uma tarefa difícil escutar a Cristo através das Escrituras, a Igreja tem escolhido perscrutá-lo através das investigações teológicas. Alguns escolhem ler a Palavra debaixo da orientação do Espírito, como os abolicionistas nos séculos 18 e 19 fizeram no que concerne à escravidão. A teologia testa estas leituras, ao fazer perguntas ao texto e à Igreja, dando clareza ao movimento do Espírito.
Esse método teológico se apresenta como uma contraposição à proposta de Friedrich Schleiermacher. Nós não devemos começar com uma espiritualidade particular para, só então, construir nossas convicções. O melhor caminho é o oposto – partir de convicções desenvolvidas a partir de uma viva relação com a Palavra de Deus, na presença do Espírito Santo, para moldar nossa espiritualidade, permitindo que a verdade revelada nos ensine e nos corrija.
Conhecimento da graça – Temos um bom exemplo desse processo no trabalho de outro alemão, Dietrich Bonhoeffer, que estudou em um período no qual o pensamento de Schleiermacher estava em alta, nos anos que antecederam a eclosão da Segunda Guerra Mundial. A maior parte dos professores de Bonhoeffer estava afinada com a mentalidade zeitgeist de seu país, o crescente orgulho alemão que se revelava no crescimento do nazismo e da generalização do antissemitismo. Eles liam as Escrituras, mas tomando suas experiências pessoais como prioritárias; como consequência, sua teologia apenas reforçava a mentalidade de poder que permeava a Alemanha de Hitler.
Ao começar a ler as Escrituras, Bonhoeffer percebeu que Jesus deveria ser o centro de toda a sua compreensão. As verdades acerca da expiação e encarnação tomaram cor e vida em sua trajetória pessoal. Suas compreensões acerca de Cristo o ajudaram a ver que o antissemitismo e o nazismo estavam tomando o lugar de Jesus na Igreja alemã, tornando-se, na verdade, num movimento anticristo. Por isso, e a alto preço, tornou-se porta-voz da resistência cristã ao zeitgeist. Bonhoeffer sabia, como Calvino, Agostinho e tantos outros da tradição cristã, que ideias que podem parecer irrelevantes – como a Trindade, expiação, escatologia, encarnação – são extremamente importantes para a formação espiritual do ser humano. A teologia nos ajuda a mapear as Escrituras, à medida que elas nos interrogam, debaixo do poder e da presença do Espírito Santo. Ela é uma espécie de memória que nos faz ouvir o que Deus tem falado, lançando luz sobre nossa experiência.
A crescente falta de interesse em teologia deve-se, em boa parte, aos líderes que enfatizam os sentimentos em detrimento da verdade. Deve-se, também, aos membros de igreja que acham que suas experiências com Deus são mais importantes e dignas de crédito do que as verdades ensinadas na Bíblia. Mas pessoas como Jon, com sua mente ávida por conhecimentos que possam consolidar ainda mais a sua fé, mostram a validade de se interpretar tudo – inclusive, as próprias experiências – à luz da Palavra de Deus. Ele e muitos mais cristãos já aprenderam que não é possível crescer espiritualmente sem conhecer doutrina, e que a teologia é o conhecimento da graça que faz de nós discípulos fiéis.
Darren C. Marks é professor assistente de teologia e estudos judaicos no Huron University College,
na University of Western Ontário (Canadá)
na University of Western Ontário (Canadá)
Fonte: cristianismohoje, com.br
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